Rubens Amador

História de um amigo

Por Rubens Amador
Jornalista

Todos temos muitos amigos. De cada um conhecemos algumas histórias. Geralmente engraçadas. Mas tive um grande amigo que tinha entre nós uma paixão: a fotografia! Era excelente fotógrafo amador e sabia demais sobre esta arte. Ganhei dele um notável tripé, que em verdade é um "minipé", peça única e pequena, como um pires, onde a base é um mármore redondo e sobre ela está um parafuso multiuso, que serve para várias câmeras.

Guardo até hoje o presente de meu amigo e muito uso tal peça para fotos em que ligo o disparador automático e também saio na foto. Pois este amigo era casado e não tinha filhos. Depois que enviuvou, disse-me que a única parente consanguínea que tinha era uma prima, médica, casada também com um médico, e ambos trabalhavam como diretores de um hospital, próximo a Porto Alegre.

Lembro-me que certa vez o casal veio até Pelotas em visita ao meu amigo; ela sua prima consanguínea e ele primo político. O meu amigo tinha excelente casa na rua Barroso, devidamente mobiliada, e onde havia antiga prateleira com vidros de cristal e muitas preciosidades. Muitos "biscuits" alemães legítimos, copos de fino cristal importado e de onde se sobressaíam seis copos grandes e retos, decorados lindamente com detalhes em ouro legítimo. Eram muitas as belezas naquele armário. Eu ficava horas olhando-o e perguntando-lhe sobre determinado objeto. Ele abria, mostrava-me e contava-me como aquilo chegou às suas mãos na família. Este amigo era pessoa muito boa e sincera. Organizado, já tinha a foto que seria posta na sepultura que comprara - perpétua - para ser colocada ao lado da foto de sua falecida esposa, senhora muito bonita e que cedo o diabete levou.

Este meu amigo certa vez despediu-se de mim e disse-me que fora convidado por seus primos médicos para passar com eles uns 30 dias. Ele se organizou e foi. Na volta falou muito bem deles e disse-me que estava resolvido, que naquela semana mesmo iria assinar em cartório a doação de sua casa e seus pertences aos únicos parentes, que lhe disseram que não se preocupasse com doenças na velhice, que dele cuidariam, levando-o para o hospital onde mandavam e lá seria muito bem tratado. Estava feliz, como qualquer um ficaria ante uma promessa dessas. O tempo passou. Tal como prometera, passou a casa e seus pertences aos parentes. Continuamos nos encontrando quase todos os dias. Homem de 70 anos, ele adoeceu. Soube por outro amigo comum que ele estava internado na Beneficência Portuguesa, local.

Fui visitá-lo. Não gostei do que vi. Estava num quarto de segunda, ainda conversava, semblante muito triste, e se dizia desapontado com seus parentes. Que os informara de sua doença e nem lhe responderam. Notei que, pior que a doença que podia ter, seu estado de espírito estava muito baixo. Estava muito amargurado. Visitei-o todas as tardes por um bom tempo.

Notei junto a ele uma senhora que nunca fiquei sabendo quem era realmente, mas que disse-me que se condoera da situação de solidão em que meu amigo vivia e resolveu ajudá-lo. Não sei se ele a gratificava ou não. O que sei é que se tratava de pessoa muito dedicada e que estava lá todas as tardes dando-lhe assistência até que meu amigo começou a perder a lucidez. Perguntei à tal senhora se parentes não o tinham vindo ver. Negou. Provavelmente sentindo-se abandonado e enganado, passou a notar-se que estava claramente fugindo da vida. Ela então me contou que ele lhe dissera com amargura que tinha dois primos médicos que dirigiam um hospital e que haviam prometido cuidar dele quando precisasse em caso mais sério. Apesar de ele ter mandado mais de uma carta avisando-lhes da situação, nunca lhe contestaram.

Conclusão: meu amigo, certo dia, amanheceu morto. Seus primos, que tanto lhe prometeram em caso de doença, pois eram médicos e dirigiam um hospital, não cumpriram com a palavra. Só ficaram com a casa que lhes deixou em cartório, bem como todos os pertences. Se estão felizes, ou se vão continuar assim, não sei. Só Deus sabe.

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